Você está visualizando atualmente Na Santa Casa, tecnologia inovadora salva recém-nascidos de lesões neurológicas

Na Santa Casa, tecnologia inovadora salva recém-nascidos de lesões neurológicas

Na unidade já foram tratadas mais de 50 crianças, que ainda são acompanhadas ambulatorialmente. Mais de 85% recuperaram-se livres de qualquer sequela

Izabelly Sofia Medeiros, de 2 anos e 7 meses, veio ao mundo em um parto complicado. Depois de quase uma gestação inteira considerada saudável, com pré-natal no posto de saúde do bairro do Satélite, em Belém, no nono mês a mãe, a dona de casa Paloma Santos, 26 anos, repentinamente apresentou perda de líquido amniótico.

Atendida na urgência obstétrica da Fundação Santa Casa de Misericórdia do Pará (FSCMP), foi submetida a uma cesariana de emergência. A bebê precisou ser reanimada e encaminhada para a UTI Neonatal com o diagnóstico de Asfixia Perinatal e Encefaçopatia Hipoxicoisquêmica, sendo indicada a Hipotermia Terapêutica, um tratamento inovador, voltado para neuroproteção do bebê.

Com um equipamento servo-controlado, em resfriamento, com temperatura alvo de 34ºC, Isabelly permaneceu por 72 horas. O objetivo era evitar o máximo possível que, por causa dos momentos sem oxigenação no cérebro, a criança manifestasse sequelas neurológicas, como baixa visão, epilepsia, limitações motoras e deficiência intelectual.

“Até hoje é difícil de falar, porque me lembro da minha filha com tubos e um monte de aparelho. Um neném tão pequenininho. Poder vê-la correndo, falando, brincando, sem qualquer resquício daqueles momentos ruins, é uma felicidade que preenche minha alma”, balbucia o pai, o bombeiro hidráulico Joel Medeiros, 41 anos.

Depois do protocolo de hipotermia, foram, ainda, 14 dias na Unidade de Terapia Intensiva Neonatal (UTIN) e mais sete de enfermaria.

Resgatada de um estado considerado gravíssimo, que incluiu três paradas cardiorrespiratórias e insuficiência renal, Izabelly hoje é uma criança 100% saudável: “um milagre, uma benção, super sapeca, corajosa e elétrica”, resume a mãe.

A família continua sob acompanhamento ambulatorial da equipe especializada da Santa Casa.

Hipotermia Neuroprotetora

Iniciado na Neonatologia da Santa Casa em 2019, o protocolo de proteção cerebral para crianças anoxiadas é único serviço existente na rede pública e privada do estado do Pará e do Norte do Brasil. Atualmente são três leitos, que podem receber tanto bebês recém-nascidos no próprio Hospital, quanto pacientes encaminhados de qualquer município do estado, via regulação da Secretaria de Estado de Saúde Pública (Sespa).

No cumprimento de fases de indução, manutenção e reaquecimento, a terapia consiste no resfriamento corporal, entre 33.5 e 34,5 graus celsius, do corpo todo de recém-nascidos. É preciso que esses recém-nascidos sejam de idade mínima de 35 semanas, peso maior ou igual a 1800ge tempo de nascimento de até seis horas; ao que se denomina “janela terapêutica”, com extensão até 12 horas e em situações deveras excepcionais até 16 horas.

Os pacientes têm indicação quando se estabelece o quadro neurológico chamado de Encefalopatia Hipóxica-Isquêmica (EHI). Na prática, a condição decorre de um evento de asfixia pré-parto ou na hora do parto, momento com falta de oxigenação nas células, um quadro precedente de paralisia cerebral e de outros efeitos colaterais que acabam irreversíveis no campo dos neurônios e de outros órgãos.

As complicações perinatais podem ser associadas a quadros como hipertensão da mãe ou deslocamento da placenta, porém muitas vezes são repercussão de causas sem controle, por mais que o pré-natal tenha sido bem realizado e a gestante tenha se preparado.

A partir de critérios de eleição como gasometria arterial e histórico clínico, o protocolo deve ser aplicado dentro do prazo de “janela terapêutica” depois do nascimento, por três dias seguidos, em média, em um equipamento servo-controlado, destinado ao resfriamento corporal. Como o cérebro de recém-nascidos possui uma plasticidade diferenciada, o rebaixamento da temperatura recupera a estrutura, com respostas promissoras no que tange o futuro do bebê e da família.

Na Santa Casa já foram tratadas mais de 50 crianças, que ainda são acompanhadas ambulatorialmente. Mais de 85% recuperaram-se livres de qualquer sequela.

Dados universais

Quando um recém-nascido está sob o protocolo, os dados alimentam, em nível simultâneo, a rede internacional Protegendo Cérebros, Salvando Futuros (PBSF), cuja Central de Vigilância e Inteligência (CVI) ajuda a monitorar a evolução encefalográfica de cada paciente.

“Da nossa ótica hospitalar e humanitária, refletimos que tal intervenção não salva só a vida do paciente, mas da família inteira, porque, sem o tratamento pontual, é quase certo que esses pacientes evoluiriam com graves sequelas neurológicas, muitas incapacitantes e ao ponto de invalidez”, destaca a gerente geral de neonatologia da Santa Casa, a pediatra neonatologista Salma Saraty, mestra e doutora em Ciências Aplicadas à Pediatria.

Idealizadora da efetivação do tratamento de hiportermia na Santa Casa e responsável geral pelo serviço, a médica explica que existe todo um controle para que os bebês não sofram ou sintam dor ao longo da exposição ao frio, e os pacientes se mantêm sob supervisão em tempo integral, de plantão, em alerta a eventualidades. Observamos variáveis como frequência respiratoria, ritmo cardíaco e atividade cerebral, pontua.

De acordo com a World Health Organization (WHO), 700 mil a mais de 1 milhão de crianças/ano são afetadas em todo o mundo, a maior parte com comprometimento do desenvolvimento: 25% dos recém-nascidos sobreviventes apresentam sequelas neurológicas em longo prazo. Dentre os recém-nascidos com EHI grave, apenas 40% sobrevivem, a maioria com alguma deficiência física, mental ou as duas juntas.

Nascer e renascer 

Para a comerciária Selma Jaíne Marinho, 26, natural de Óbidos, no Baixo Amazonas, mas moradora de Belém há quase uma década, o filho único Nicolas Daniel, “renasceu assim que nasceu”, no dia 29 de julho deste ano: “Quando os médicos conseguiram tirá-lo, eu já estava exausta; vinha de horas de espera em outro hospital. Ele não chorou e nem se mexeu. Minha mãe tentou evitar que eu percebesse, mas consegui enxergar as manobras de ressuscitação”, angustia-se. A acompanhante no parto era a mãe dela, a funcionária pública Maria Selma Barros, 56.

Atendida na Emergência Obstétrica da Santa Casa com diagnóstico de hipertensão (eclâmpsia) e sangramento, Selma Jaíne enfrentou uma cesariana de imediato. Tanto o bebê, como a puérpera precisaram ser internados na UTI.

A possibilidade de Hipotermia foi apresentada ao pai da criança, o bombeiro civil Vicente Ferreira Júnior, 34. Selma Jaíne teve alta em sete dias e Nicolas, em 11. O tratamento deu certo. Nicolas está se aproximando de um mês e meio de vida sem nenhuma intercorrência: “É gordinho, animado, reage a tudo o que a gente faz e fala. É um tesouro”, conta a mãe.

A família mantém acompanhamento na Neonatologia da Santa Casa, com consulta uma vez por mês e exames periódicos.

“É uma tecnologia de ponta disponível no SUS, que envolve ferramentas e capacitação únicas, como marcadores e monitoramento rígido. Pode parecer assustador e desconfortável pensar no frio, mas o resultado é comprovadamente promissor, podendo contribuir para redução da mortalidade neonatal, melhorar o futuro da criança e da família, além de diminuir muito os custos hospitalares ao evitar as sequelas permanentes”, conclui a médica Salma Saraty.

Deixe um comentário